Esse tema é bastante controverso, pois a adoção desta prática traz vários riscos
VIVIANI GOMES
Professora Clínica Médica de Ruminantes da FMVZ-USP. Coordenadora GeCria – Grupo Especializado em
Medicina da Produção aplicada ao período de transição e criação de bezerras.
CAMILA MARTIN
Possui graduação em Medicina Veterinária pela Universidade Federal do Paraná. Residência na Clínica e
Cirurgia de Ruminantes pela FMVZ-USP. Atualmente é mestranda na FMVZ-USP, área de Clínica Médica de Ruminantes.
A criação de bezerras é um grande desafio no sistema de produção leiteiro devido ao elevado investimento financeiro entre o nascimento até a fase de novilha com 22 a 24 meses de idade, estimado em aproximadamente U$ 1124,06 (R$3.833,00), perdendo apenas para os gastos com a alimentação das vacas em lactação.
O leite é o produto final no sistema produtivo leiteiro, sendo o componente que mais onera os custos no sistema de criação de bezerras, representando 70% do custo total com alimentação. O período de aleitamento das bezerras ocorre em torno de 60 dias, sendo fornecido ao redor de seis litros de leite ao dia. O preço do leite pago ao produtor no estado de São Paulo é em média R$1,18 por litro de leite, com pequenas variações neste valor entre os estados, desta forma pode-se estimar o custo de R$ 424,80 para o aleitamento de uma bezerra entre o nascimento e desmame.
Figura 1 – Aleitamento utilizando-se mamadeiras e baldes. O uso de mamadeiras é benéfico considerando-se o bem estar das bezerras, entretanto o aleitamento em baldes é mais prático em propriedades com elevado número de animais na fase pré-desmame.
Devido aos altos custos nesta fase da produção, muitos produtores buscam formas alternativas de aleitamento, destacando-se o uso do leite de descarte. O leite de descarte é impróprio para o consumo humano, sendo proveniente de vacas no pós-parto, incluindo o colostro de baixa qualidade, leite de transição; leite de vacas com mastite com elevada CCS e leite de vacas em tratamento com antibióticos. Na China, estima-se que 2 a 4% da produção total de leite sejam descartadas, representando 0,8 a 1,6 milhões de toneladas de leite por ano. No Brasil, não há estimativas sobre o volume de leite de descarte produzido.
Apesar do leite de descarte parecer uma alternativa simples e sem custos para alimentação das bezerras, deve-se pensar nos motivos pelo qual o produto foi descartado.
Se o leite de descarte é impróprio para o consumo humano, será mesmo uma boa alternativa para o aleitamento das bezerras?
O uso do leite de descarte para alimentação das bezerras é bastante controverso, pois a adoção desta prática traz riscos de contaminação por microrganismos patogênicos e toxinas, aumento na ocorrência de doenças infecciosas, principalmente por Escherichia coli, Salmonella e Mycoplasma, o que pode elevar os índices de diarreia, doença respiratória e mastite em novilhas. Além disso, a composição nutricional do leite de descarte é variada, e pode conter resíduos de antibióticos que aumentam a resistência bacteriana e levam a ineficácia dos antimicrobianos disponíveis no mercado.
Para tentar minimizar estes riscos tem-se buscado alternativas para melhorar a qualidade do leite de descarte e torná-lo seguro para o consumo das bezerras. Visando este objetivo, algumas pesquisas avaliaram a pasteurização e a acidificação do leite de descarte em relação ao desenvolvimento da microbiota intestinal, sanidade e desempenho das bezerras.
A pasteurização rápida é realizada com o aquecimento do leite a 72°C por 15 segundos utilizando pasteurizadores adequados para a inativação da maioria das bactérias com redução maciça na carga de patógenos. A acidificação do leite de descarte é feita pela adição de ácido fórmico em quantidade e concentração específica, o que inibe o crescimento ou mata bactérias patogênicas, e ainda permite o armazenamento do leite por vários dias sem refrigeração. No Brasil, a venda de ácido fórmico é controlada pela polícia federal, sendo assim as fazendas têm empregado ácido cítrico para a acidificação do leite de descarte. Infelizmente desconhecemos pesquisas que avaliaram o efeito deste processo de acidificação sobre o microbioma intestinal.
Figura 2 – Pasteurizadores para o tratamento térmico do leite de descarte.
Atualmente o mundo científico tem trazido descobertas em relação ao microbioma. O microbioma é o conjunto de microrganismos que colonizam o organismo do animal, composto principalmente por bactérias localizadas no intestino. Por exemplo, o corpo humano contém 100 trilhões de bactérias (10x mais que células humanas eucarióticas), das quais 90% habitam o intestino. Estas bactérias são divididas em três grandes grupos:
1. Bactérias comensais: microrganismos que não ajudam e não causam nenhum mal ao animal;
2. Bactérias simbióticas: microrganismos que trazem benefícios ao animal;
3. Bactérias patobióticas: microrganismos com potencial de causar doenças.
As bactérias simbióticas (“super-heróis”) são produtoras de vitaminas B e K, fermentadoras de carboidratos (=ganho de peso), produzem substâncias com ação antibactericida contra as bactérias patobióticas e são fundamentais no processo de desenvolvimento do sistema imunológico.
A principal via de entrada das bactérias até o intestino é oral, ou seja, a dieta da bezerra é fundamental no processo de colonização do intestino. Devido a este fato, os pesquisadores têm pensado muito sobre o impacto do uso de leite de descarte sobre o microbioma do intestino das bezerras.
O aleitamento com o leite de descarte fresco tem sido associado à presença de Salmonella nas fezes. Por outro lado, o oferecimento de leite de descarte pasteurizado eliminou o risco de salmonelose. A Salmonella está entre os principais agentes causadores de diarreias em bezerras. A disseminação desta bactéria ocorre entre os animais após terem contato com alimentos contaminados, bezerras recém-nascidas podem se infectar por meio do contato com suas mães se estas estiverem infectadas.
A doença começa a aparecer após a primeira semana de vida, sendo mais comum por volta de duas a seis semanas de idade. As principais alterações observadas nas bezerras são febre alta, perda de apetite, fraqueza e diarreia. Na infecção aguda por Salmonella ocasionalmente é observada a diarreia, sendo mais frequentemente observada a febre, apatia e sinais respiratórios. A taxa de mortalidade varia de 10 a 50%, sendo inversamente proporcional à idade dos animais.
Pesquisa atual realizada na China por Deng e colaboradores (2017), avaliou o efeito do uso de leite de descarte fresco, leite de descarte pasteurizado e leite de descarte acidificado sobre o microbioma intestinal. Os autores descobriram que o uso do leite de descarte fresco aumentou o risco de doenças metabólicas. Os pesquisadores também observaram aumento na população de algumas bactérias que não são consideradas benéficas para o intestino:
1. Clostridium é considerado um patógeno oportunista que pode causar timpanismo abomasal e inflamação no intestino;
2. Holdemania é um grupo de bactérias associadas com bovinos magros;
3. Odoribacter é um grupo de bactérias associadas com estresse e doenças;
4. Bactéria Stenotrophomonas associada à doença inflamatória intestinal em humanos.
Interessante é que os pesquisadores chineses encontraram alguns efeitos benéficos com o uso de leite de descarte pasteurizado e acidificado. O leite de descarte pasteurizado elevou o número de bactérias simbióticas que são responsáveis pela degradação de proteínas e polissacarídeos, que representam fontes de energia para as bezerras. Por sua vez, o leite de descarte acidificado aumentou a população de Bifidobacterium, bactéria bastante utilizada como probiótico pelos seus efeitos benéficos na saúde e desenvolvimento dos animais.
As bactérias do gênero Bifidobacterium são consideradas excelentes probióticos por possuir ação antibacteriana sobre as bactérias patogênicas, além de prevenir infecções por vírus. As bifidobactérias também possuem a função de estimular o crescimento de outras bactérias “super-heróis” produtoras de antibióticos, o que leva a menor ocorrência de diarreias. Além disso, o Bifidobacterium é fundamental para o desenvolvimento do sistema imune da mucosa intestinal.
Outro achado muito importante da pesquisa chinesa foi o aumento da população de Faecalibacterium em animais que receberam leite de descarte acidificado, sendo a presença de grandes quantidades desta bactéria associada com o aumento no ganho de peso em bezerros pré-desmame e a baixa incidência de diarreia.
Com base nestas informações podemos concluir que o leite de descarte fresco é um potencial meio para a transmissão de doenças pela sua alta carga de bactérias patobióticas, o que afeta o desempenho futuro das bezerras.
A pasteurização e acidificação do leite de descarte parece ser uma alternativa viável para reduzir a sua contaminação do leite de descarte, embora estes processos não eliminem os resíduos de antibióticos.
Referências bibliográficas
DENG, Y. F.; WANG, Y. J.; ZOU, Y.; AZARFAR, A.; WEI, X. L.; JI, S. K.; XU, Y. Influence of dairy by-product waste milk on the microbiomes of different gastrointestinal tract components in pre-weaned dairy calves. Nature: Scientific reports, v. 7, p. 42689, 2017.
Fonte: MilkPoint